Tudo que penso tem uma origem inescrupulosa e pueril, isso é tudo que me limito a ser.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Agora finalmente tudo é branco

O homem está com as costas apoiadas na parede, no lado mais longo de uma pequena sala retangular. Está sentado no chão abraçado aos joelhos dobrados, observando os movimentos dos dedos dos pés nas meias brancas de algodão. Usa blusa e calças brancas de tecido áspero, como brancas são as pare des em que está enclausurado. Encostado à parede diante dele, solidamente preso ao chão, há um leito tubular de metal.

Branco também.

Não há lençóis, mas brancos são o colchão e o travesseiro. E branca é a luz que se derrama do teto, protegida por uma pesada grade cuidadosamente pintada de branco, que parece ser a própria fonte de brancura ofuscante daquela sala.
Aquela luz nao se apaga nunca.

Ergue lentamente a cabeça. Seus olhos verdes olham sem angústia para a única minuscula janela, colocada alto suficiente para ser inatingivel. É o unico relógio que tem à disposição para marcar a passagem do tempo.

Claro e escuro. Branco e preto. Dia e noite.
Nao sabe o por quê, mas o azul do céu não aparece nunca.
Sua solidão não lhe pesa.
Experimenta, aliás, uma espécie de incômodo cada vez que um sinal de mundo lhe chega de fora. De vez em quando, uma janelinha se abre na porta, embaixo, e uma bandeja com travessas de plástico cheias de comida desliza sobre o pavimento. O plástico é branco e a comida tem sempre o mesmo sabor. Não há talheres. Come com os dedos e restitui a bandeja e as travessas quando a janelinha volta a abrir. Recebe em troca um lenço branco e umedecido pra limpar as mãos. Tem que devolvê-lo em seguida.
De vez em quando uma voz lhe diz que fique de pé no centro da sala e estenda os braços pra frente. Observam seus movimentos pelo olho mágico no centro da porta. Quando vêem que está na posição certa, a porta se abre e alguns homens entram, enfiam uma camisa de força em seus braços e apertam bem atrás das costas. Cada vez que é obrigado a usá-la, ele sorri.
Sente que aqueles homem maciços, vestidos de verde, têm medo dele, e nota que tentam de todos os modos evitar seu olhar. Quase sente o cheiro do medo que lhes incute. Contudo, já deveriam saber que o tempo de lutar acabou. Já repetiu isso várias vezes ao homem de óculos que se encontra na sala para onde é levado, o homem que quer saber, que quer entender.
Já disse várias vezes também que não há o que entender.
Só aceitar o que acontece e continuará a acontecer, do mesmo modo como ele aceita impassível ficar trancado em toda aquela brancura até o momento em que começar a fazer parte dela.
Não, sua solidão na lhe pesa.
A única coisa que lhe falta, é a música.
Sabe que jamais lhe permitirão tê-la de novo, portanto, fecha os olhos de quando em quando e consegue imaginá-la. Tocou-a tantas vezes, ouviu-a tantas vezes,
respirou-a tantas vezes que agora, quando procura por ela, ele pode encontrá-la intacta, como era no momento em que entrou nele. As recordações, as que são feitas de imagens e palavras, míseras cores desbotadas e roucos sons envilecidos pela busca de um significado, já não lhe interessam mais. Em sua prisão, a memória só lhe serve agora para reencontrar, como um tesouro escondido, toda a música que possui. É a única herança deixada por aquele homem que um dia se arrogou o direito de “pai”, antes que ele finalmente resolvesse deixar de ser seu filho e lhe retirasse o direito, juntamente com a vida.
Quando se concentra bem, consegue ouvir como se estivesse a seu lado o delizar de uma mão ágil no cabo de uma guitarra elétrica, o som raivoso de um solo que parece uma corrida escadas acima, girando, girando, subindo cada vez mais alto e que parece não ter fim.
Sente o chiado das vassouras nos pratos de uma bateria ou o hálito úmido e quente de um homem que abre caminho com dificuldade no funil tortuoso de um saxofone e, como tal, se transforma numa voz de humana melancolia, a pontada aguda do lamento por alguma coisa bela que se possuía e que se desfez entre sua mãos, corroída pelo tempo.
Pode-se encontrar sentado no meio de uma secção de cordas e vigiar por sobre o ombro o movimento rápido do arco do primeiro violino. Pode se enfiar insuspeito entre as espirais sinuosas de um oboé ou observar os dedos de unhas tratadas que se agitam nervosos entre as cordas de uma harpa, como animais selvagens atrás das grades de uma jaula.
Pode ligar e desligar quando quiser aquela musica que, como todas as coisas imaginadas, é perfeita. Ali dentro tem tudo o que precisa, todo o se, todo seu futuro.
A musica dá e sobra para derrotar a solidão. A musica é a única promessa cumprida, a musica é a única aposta vencida. Disse a alguém, certa vez, que a musica é tudo, que é o inicio e o fim da viagem, que a musica é a própria viagem.
Eles o ouviram, mas não acreditaram. Por outro lado, o que se poderia esperar de quem toca ouve a música, mas não é capaz de respirá-la?

Não, não tem medo algum da solidão.

E depois, não esta sozinho.

Nunca, nem agora.
Ninguém o entendeu até agora e talvez ninguém consiga entendê-lo em seguida. Foi por esse motivo que buscaram tão longe o que estava diante de seus olhos, como todos fazem, como todos sempre fazem. Foi por esse motivo que conseguiu se esconder tanto tempo entre aqueles olhos apressados, exatamente como o negro se esconde entre as cores. Nenhum deles poderia aceitar o brando ofuscante de uma sala como aquela em que se encontra sem gritar.

Mas ele não precisa disso. Não sente necessidade nem de falar.

Apóia a cabeça na parede e fecha os olhos, afasta-se por alguns instantes da brancura daquela sala, não por temor, mas por respeito.
Sabe que pode agüentar a brancura, porque ninguém é tão obscuro por dentro, como ele.



Eu matoGiorgio Faleetti